ESCOLA WALDORF QUERÊNCIA

Porto Alegre - RS

"O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E, de vez em quando, olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema II"

A criança, ao ingressar em uma turma de primeiro ano do Ensino Fundamental em uma escola Waldorf, encontra-se nesse estado de pasmo essencial… está aberta, entregue, para que o professor de classe lhe conduza em seus primeiros passos do descortinar do mundo da cultura humana – porque a cultura do mundo espiritual ela já traz dentro de si e, através do movimento com propósito, vai acordando seus membros e fazendo despertar lentamente, como de um sonho, a consciência de como o espiritual se faz presente na terra.
Foi com essa matéria-prima que me deparei ao assumir a turma de primeiro ano da Escola Waldorf Querência. Ao mesmo tempo, já percebia, em minhas crianças, em ainda tão tenra idade, os efeitos da aceleração da vida contemporânea. Crianças por vezes desvitalizadas, desinteressadas em relação ao que o mundo lhes apresentava, vivendo, em alguns momentos, mesmo que com os pés no barro, com suas cabeças já no futuro, com crenças no discurso científico materialista, sem o espírito naturalmente observador e experimentador que se espera dessa fase da vida.
Como cenário para minhas aulas, uma escola com 8 hectares que envolvem floresta, algumas poucas construções, muita terra cultivável, animais domésticos nos arredores, árvores centenárias, flores, chuva, borboletas, pássaros, enfim: a natureza, generosa como sempre.
Nossa escola está consolidando sua identidade dentro da pedagogia Waldorf: tendo nela suas bases, agora busca sua maneira própria de trabalhar com ela, dialogando com as peculiaridades de nosso entorno e com as necessidades de nossas crianças. Cada professor busca, dentro de sua área de atuação, criar a sua relação com essas questões. Tendo em vista tudo isso, para mim logo ficou claro que minha "sala de aula" não poderia ser apenas a aconchegante construção de madeira de 50m2 que abrigava meus passarinhos recém pousados no ninho… eles precisavam alçar pequenos voos, treinar suas recém conquistadas asas.

Assim, já no preparo do "ninho" que acolheu nossos pousos, o ambiente interno possuía coerência em relação ao ambiente externo. Sinto que isso fez uma grande diferença, pois nossa sala de aula "conversa" com o ambiente, e o recebe dentro dela também, fazendo parte dessa grande respiração do dia a dia das crianças de uma forma muito orgânica. A comida teve também um lugar muito nobre dentro desse ambiente. As famílias revezaram-se durante todo o ano trazendo lanches balanceados, orgânicos, contendo cereais, folhas, raízes, frutas. Uma vez por semana, como no Jardim de Infância, eles faziam o pão comigo, e esse momento nos serviu de ritmo, de preparo de formas, de momento de modelagem, de momento de fazer as operações.
Em algumas épocas optei por iniciar nossas manhãs com caminhadas pelo terreno da escola, fazendo com que isso fizesse parte do ritmo inicial da manhã, em outras eles caminharam em outros momentos. Alguns caminhos já haviam sido demarcados por outras turmas, como o do "Bosque do Silêncio", ou o "Caminho dos Portais". Outros foram sendo criados por nós em nossas caminhadas de observação, sendo um dos preferidos das crianças o da "Árvore da Vida". Quando passávamos por este lugar especial, em que há esta majestosa árvore, as crianças lhe deram esse nome e ela passou a ser tratada como uma espécie de anciã, merecendo o bom dia da turma toda e algumas conversas e canções. Ela foi a casinha das bonecas, participou do desafio de Micael, foi nossa conselheira e nossa ouvinte atenta. Outra árvore que se tornou muito amiga da turma foi a "Timbaúva-mãe", uma grande Timbaúva que há no meio do pátio central da escola e a qual, para alegria das crianças, revelou ter mesmo uma filha ali por perto e até uma jovem netinha. (Isso as crianças descobriram ao longo do ano, observando as folhas irem surgindo e a "identidade" da pequena árvore ir se revelando, por comparação.) Em nossas caminhadas conversamos com os passarinhos, vimos as movimentações dos insetos, ouvimos as histórias dos ventos, conhecemos os efeitos das chuvas e do sol. Conhecemos os segredos do trigo e do centeio, e um aluno um dia disse, muito seguro, a respeito da dificuldade de diferenciar entre um e outro: - Eu sei qual é o trigo e qual é o centeio: o trigo brilha mais!
Na primeira época que trouxe aos meus alunos, vivenciamos muitas formas. A forma é o rastro do movimento, e por isso aproveitamos muito o amplo espaço para caminharmos formas retas e curvas, e até mesmo os canteiros eram aproveitados para essa dança. Desenhamos essas mesmas formas também nas areias do "Deserto" (nome dado pelas crianças da escola para a área onde seriam posteriormente construídas as novas salas de aula, e em que já havia ocorrido a terraplanagem), para só depois as transferirmos para as costas, as mãos dos colegas, e, por fim, o caderno.
Nas épocas de Letras o que mais aproveitei foram as imagens que captávamos nos passeios e que eu ia inserindo nas histórias que contava. Com que alegria as crianças encontravam as "personagens" com as quais estavam convivendo dentro de nosso ninho lá fora, e como prestavam atenção então a mais detalhes do que eu mesma havia notado. O amor que foram desenvolvendo por cada canto da escola gerou lindos nomes especiais: o "Abraço da Terra" (um côncavo na terra onde nos sentávamos para ouvir histórias, realizar tarefas de trabalhos manuais, onde íamos conversar e brincar); as "Goitangueiras" - árvores que na verdade têm o nome de Camboim, mas que devido a seu tronco parecido com o da Goiabeira e as folhas parecidas com as da Pitangueira receberam esse nome "misto" das crianças. O "Labirinto", projeto de jardinagem feito com o professor da área e que eles cuidaram com esmero.
A vivência mais marcante em relação às letras foi com as vogais. Na época de apresentá-las para as crianças, escolhi caminhos que traziam a vivência da qualidade anímica de cada uma das vogais. Assim, quando trouxe o "A", convidei as famílias para tomarmos café da manhã na varanda da sala de aula, admirando a belíssima aurora, e depois todos juntos caminhamos até um ponto bem alto e admiramos a amplidão, fizemos um grande "AH!" de satisfação. Assim cada vogal trouxe vivências ímpares, e até hoje quando passamos pelos caminhos as crianças se lembram de trechos das histórias que contei e do que esses locais evocaram nelas.
Algo que fiz também, como alimento para minhas imagens, foi meditar acerca das vogais em relação aos planetas que as regiam e às plantas dos preparados biodinâmicos. Assim, por exemplo, na época do "E", fiz mudas de urtiga, plantei algumas na escola, mostrei às crianças, no "O" sopramos dentes de leão, plantamos algumas, mas tudo sem trazer essas relações de forma consciente para as crianças. Foi um lindo exercício de observação para mim.
Nas épocas de números, explorei ainda mais as caminhadas, treinando o equilíbrio em troncos do caminho, contando flores, poças puladas, pitangas colhidas, as patas dos animais. Achando o dois nas folhas que brotavam aos pares, o três nos trevos, o quatro e o cinco nas pétalas de algumas flores, sentindo-nos parte do Grande UM. Além disso, associando as operações aos reinos da natureza, elas ganharam muita vida e encontravam as crianças a qualquer momento, em todo lugar.
Com os animais tivemos vivências encantadoras, de serenidade e atenção. Uma linda vivência que realizamos em parceria com a professora de trabalhos manuais, o professor de jardinagem e a professora da turma "madrinha" da nossa (a do sétimo ano), foi a visita às ovelhas de um vizinho da escola. (No Primeiro Ano, nos Trabalhos Manuais, as crianças vivenciam todo o processo da lã.) Os adultos e alunos mais velhos tiveram a oportunidade de pastorear as ovelhas, e as crianças puderam interagir com elas em seu ambiente, sentir sua lã, observar seu comportamento.
Uma parte muito importante do ritmo diário do primeiro ano foram os momentos de jardinagem, que eles tiveram por meia hora todos os dias, com o professor especializado. Minha participação nessas aulas era criar o ambiente necessário para que elas acontecessem, conduzindo as crianças, trazendo canções ligadas ao trabalho que se realizava, criando rituais de início e de fim, fazendo a manutenção relativa a alguns projetos iniciados nesses momentos e, principalmente, aprendendo junto com eles, fazendo. Finalizando esse relato, quero apenas ressaltar o que possibilitou que meu trabalho com minhas crianças se realizasse dessa maneira: as parcerias. Para fazer o que foi feito, mobilizaram-se muitas mãos - outros professores, nutricionista, vizinhos, funcionários da escola foram envolvidos. E a parceria fundamental, que foi a base desse trabalho, foi com as famílias. Conversamos em muitas reuniões, em que expus meus planejamentos, fizemos reuniões periódicas em que as famílias se envolviam com os fazeres das crianças e podiam sentir em si os efeitos desse trabalho e também refletir sobre ele. As famílias se envolveram, carregaram no colo as ideias, participaram, questionaram, e tudo isso junto comigo. Pude sentir, do começo ao fim do ano, a confiança e o amor pelo que tínhamos a fazer em prol daquilo que nos uniu: as crianças.
Enfim, essas foram algumas das atividades que considerei mais importantes durante o ano com minha turma envolvendo o contato com a natureza e o trabalho na terra agregado ao meu trabalho com o currículo, enquanto professora de classe. Como tudo o que se realiza nessa pedagogia, deve ser considerado dentro de seu contexto singular, e talvez possa servir de impulso para que outros passarinhos arrisquem seus voos em ares ainda inexplorados.

Prof.a Michele Melos